Como Vasili Arkhipov pode nos ensinar a vencer o fascismo

Nas rupturas, nas grandes rupturas, naquelas em que a humanidade se sente ameaçada por um terremoto, por um meteoro, pela peste, ou pelo fascismo, o ser humano é capaz de proezas inconcebíveis.

Contam que Vasili Arkhipov, um oficial da Marinha soviética, evitou um massacre nuclear em 1962 na famosa “Crise dos Mísseis” ao recusar um ataque a Washington. O submarino que comandava estava sem comunicação com Moscou e, por alguns instantes, foi avaliado pela tripulação militar que a guerra havia começado. Estavam um botão de disparo e um ser humano, frente a frente e eles não se encontraram. Não havia começado a guerra, mas se o disparo tivesse sido feito, a guerra teria começado e, provavelmente, não estaríamos aqui lendo e escrevendo este artigo.

Na mitologia grega, há a figura de Plutão que simboliza o arquétipo daquilo que está localizado no mais fundo, na casa de máquinas, no ponto zero da vida e da morte. Dali se chega no Inferno, mas também faz da última centelha a possibilidade da combustão que levará à cura. Ali é o ponto de inflexão.

Estamos caminhando a passos largos para um ponto desses. De onde digo isso? Justamente percebendo que há muitos – talvez a maioria – imunes ao senso crítico. E é exatamente isso que caracteriza o fascismo: um estado de coisas onde o ódio à diferença, um inimigo comum, a solução fácil, a solução violenta, um modo de vida castrador e a tutela à vida privada dominam grande parte do inconsciente coletivo e evitam o diálogo.

O ódio domina e apertaria o botão de disparo que Arkhipov recusou.


Se acreditamos no que nossa história nos dá de notícias de tempos não tão remotos, a sociedade brasileira – como um corpo coletivo simbolizado na posição do paciente num divã –  precisa de uma revolução democrática e de ponderação. Porque foi isso que nós perdemos, ou estamos muito próximos daquele momento onde há a centelha que dirá se haverá a combustão ou o apagar completo.


E essa não é só uma revolução, ou ponderação, da esquerda. A direita, para ser direita, precisa de um ponto de referência para dizer-se direita. E essa referência é justamente a esquerda. Sem ela, só existe o único, o todo, o totalitário: ou melhor, o fascismo. Porque a ele não existe contraponto. E para o fascismo se manter, há de ter a violência que emana da sociedade – ou de grande parte dela. Ela precisa estar bem armada e disposta a manter seu status quo por vontade própria.

A democracia é a célula básica, a casa de máquinas possível dessa coexistência que, nós, seres humanos em 2018 conseguimos até agora. Se ela for rompida, perderemos e ratificaremos nossa própria destruição.


O fascismo vem comendo o extrato social mais desalentado economicamente da população brasileira, chegou na classe média – de onde fazemos parte – e ameaça as individualidades, nas questões de gênero, de origem, de raça, de sexo. E isso é como sentenciar de morte uma quantidade enorme de indivíduos. Porque é o que eles são – nós somos! – no que há de mais indivisível. Por isso, o indivíduo é ameaçado quase na sua essência: não há espaço para muito de nós, negros, gays, estrangeiros e mulheres porque simplesmente ninguém deve ser obrigado a deixar de ser mulher, gay, negro ou estrangeiro.

Mas há negros e gays e mulheres que votam em Bolsonaro.

Sim, por isso o fascismo é eficiente. Porque faz com que indivíduos das mais diferentes origens se sintam potentes em seu discurso. Simone de Beauvoir já nos alertava que “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. Lá na frente, o futuro literalmente a Deus pertence. O importante – sentem os portadores do discurso fascista – é sentir o poder, o tesão de portar uma arma, emanar uma voz mais forte, deixar fluir seus desejos mais inconfessáveis e aniquilar o outro. Sem que ninguém o reprima. Ou melhor: que seja reprimido quem o quer reprimir, fazendo perversamente a lei redigida, eleita pelo povo, ratificar a barbárie.

Mas se a Constituição, que baliza a República, nasceu justamente das garantias e direitos do homem contra o Estado, estaríamos então num movimento anticonstitucional. E não há algo mais onipotente, prepotente, absolutista e violento do que o pensamento único. E, de novo, só a democracia garante a divergência; assim como o esporte garante a existência do confronto, sem que a equipe perdedora seja fuzilada.


E é dessa forma que percebemos que o que nos une é a única instituição que nos permite distinguir-nos na adversidade. O fascismo, não. O fascismo troca os sinais de todo e qualquer fato. Se você aponta para o perigo do nazismo de Hitler, a máquina de informação fascista dirá que o “nazismo é de esquerda”. Se alerta para a violência de seus apoiadores, o fascismo dirá que reprimir seus ideais é, também, uma violência. Como se ser homofóbico e racista estivesse no mesmo rol de possibilidades, e de ética, de ser a favor dos direitos humanos. Para todas as outras respostas, há enchentes de fake news como cortina de fumaça para escapar do debate. Porque no oceano turvo de informações, quanto mais for possível mergulhar nesse jogo de espelhos onde nada tangencie a verdade, melhor.


Por isso, precisamos do heroico, de algo solar, que faça ser possível a centelha se transformar em cura.


Não falo de um Superman. Digo de um arquétipo de heroísmo, algo da ruptura que cada um de nós é capaz. O jornalista que se rebela ao ser obrigado a dar uma notícia combinada pelo dono da emissora para atacar um só candidato,  a crente que se recusa ao sermão de ódio de um pastor e confia na sua intuição de paz, o comerciante que arrisca um cliente para não arriscar a humanidade, o parente que põe em cheque a “harmonia do ódio” familiar ao ponderar com senso crítico, o policial que se sente empático ao senhor que protesta etc.


Todos esses são atos heroicos e não negam, em absoluto, as lutas coletivas. Ao contrário: essa ruptura individual só se torna possível – e potente – se houver um sentimento social envolvido que o impulsione. Sentimento este que, com certeza, estavam segurando os dedos de Vasili Arkhipov no momento em que, mesmo sendo um profissional da guerra, decidiu optar pela civilização contra a barbárie.


Na cabine de votação, na casa de máquinas da democracia, você terá a chance de repetir o gesto de Arkhipov e apertar os dois botões que fará da centelha combustão para a vida, impedindo que o ódio confirme a guerra civil e o horror.


Votar em Bolsonaro é disparar os mísseis. Sim, Haddad é o diálogo; é a não-guerra, o não-ódio e a não-tortura.

Não é pelo PT, é pela democracia e pela vida.

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Daylight 5600K

Hoje é dia trinta fim
da linha
Sem passo nem roupa
Sandália impossível
porque o vapor
te eleva
como buda marginal
ofegão

Sabor da pele
– persistência retilínea –
Na boca
desagrupam células
Reordenam
Superspeed
Sessenta frames
por segundo
Quiçá 240
Fps

Lá dentro
Laboratório de vida viva
Encapsulada memória
Matéria invernal
Ordenada semântica
sequenciada
Respiração sádica
Ritmada
len
ti
dão

Cá no equinócio
Creme de asfalto
caramelo
Cardume; brotado diário
Música porosa
Melodia negra
Petroleum místico
Acetato viscoso
que transborda o dedo
O dedão que nunca seca
Não desengoma
Não solta
Não esquece
Por favor.

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De volta ao Brasil!

220px-Jango

Hoje o Brasil volta ao normal. Desde a proclamação da república, 42 presidentes governaram esse país. Desses, só 18 foram eleitos pelo voto popular e só 11 terminaram seus mandatos. 75% dos presidentes desse país governaram SEM MANDATO POPULAR. Aqui, democracia nunca foi regra, sempre foi exceção.

Tivemos golpes de vários tipos e gostos, sempre em tons amargos, (mal) digeridos nas vísceras da população mais pobre. Ao fim e ao cabo, eles têm algo em comum: serviram para simular uma mudança para manter tudo como sempre esteve: uma elite se desdobrando para continuar dona da máquina e de tudo que é público. E isso nos fez, por muitas décadas, ser o país mais desigual do mundo, situação minorada nos últimos anos, mas que ainda está longe de ser erradicada.

Foi assim com a Constituição de 1824, quando o imperador resolveu interromper uma constituinte que ele mesmo elegera para que ele, junto a alguns “notáveis” de sua escolha, redigisse o texto.

Foi assim com o “golpe da maioridade” quando o Senado proclamou, com uma canetada, que D. Pedro II simplesmente era maior de idade aos 14 anos.

Foi assim com a proclamação da república, simbolizada por Marechal Deodoro, um militar amigo pessoal do imperador que, a princípio, não tinha cogitado a república, mas foi “coagido” a instaurá-la e o imperador fugiu para a Europa dando início a um período na história do país chamado de “rebública velha”.

A república velha (1889-1930), por sua vez, nada mais foi do que um período de golpes sobre golpes, um condomínio de revezamento de atores políticos inventados para justificar seus poderios econômicos locais, notadamente entre Minas e São Paulo.

Foi assim com a criação do Estado Novo em 1937, quando Getúlio Vargas instituiu uma ditadura através de uma nova constituição, que durou até 1945.

Foi assim com o suicídio de Vargas em 1954 (já eleito pelo povo), resultado de uma pressão golpista que atrasou em 10 anos o golpe militar que viria.

Foi assim em 1961, quando o Congresso Nacional instaura um “parlamentarismo” temporário, através de um golpe, por conta da tentativa já de um golpe contra João Goulart.

Foi, assim, claro, com o golpe de 1964, onde afundamos a parca democracia que vínhamos construindo em 20 anos de sombras e atrasos nos direitos humanos e na dependência acelerada ao capital externo (vide Plano Condor).

Mas nem sempre foram militares. Alguns, é certo. Mas o fato é que mesmo os militares nunca aceitaram a pecha de “golpistas”. Diziam-se ~revolucionários~. E, de fato, mesmo nesses golpes comandado pelos quartéis, havia a preocupação de fazê-los parecerem legais. Da mesma forma, recentemente, em Honduras e no Paraguai os movimentos de deposição dos presidentes democraticamente eleitos foram “validados” pelas instituições públicas que corroboraram para o golpe.

A história, como se sabe, se faz na tragédia e depois na farsa. Vivemos na repetição de uma farsa: a democracia. Há muito, tentamos rodeá-la, mas parece que nossa vocação versa mesmo pela perenidade golpista.

Agora em 2016, voltamos às nossas raízes. Estamos tirando uma presidenta eleita pelo voto popular, contra qual não pesam quaisquer acusações que propiciam um impeachment. Mas temos instituições, perpetradas de ranço de poderes autoritários e antidemocráticos, que chancelam a legalidade. A mesma legalidade que TODOS os golpistas de nossa história, sem exceção, elencaram para se justificar. Do Senado que conferiu a maioridade a D. Pedro II ao que decretou vaga a cadeira de presidente de João Goulart; do STF que justificou o AI-5 ao que permitiu que um Eduardo Cunha fizesse da Câmara dos Deputados um palco de chantagens.

Os poucos períodos democráticos atentam contra nossa estabilidade golpista. Paradoxalmente, as únicas coisas que são de verdade no Brasil são os golpes. A democracia, não. Essa é de mentira.

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Linha em perspectivas

Queria poder dar parabéns ao PSOL, na figura do Marcelo Freixo,  pela coerência ideológica em seu texto publicado hoje na Folha. Queria poder dizer que é linda a vanguarda, mas “tudo é muito mais”, diria Caetano. Seria cômodo. Ficaria de boas com a minha consciência, com meu círculo de amigos de esquerda e seguiria votando – como voto – em alguns candidatos do partido (incluindo o próprio Freixo!), tranquilo, com minha “ficha limpa” na relação entre mim e a urna.

 Mas aí você vê a manifestação da direita. Inegável a força que demonstram. Uma força fascista, violenta, golpista e antidemocrática como talvez nunca vimos nos últimos 30 anos. Culpar o PT pelo ódio de classe dessas pessoas porque “não fez as reformas de base” no momento “oportuno” (alguém sabe quando foi esse momento?) é uma análise tão, perdoe, tão vanguardista quanto a aura que envolve o PSOL. Uma análise tão conveniente, tão necessitada de entender a história através de um líder (PT, Lula, Dilma) que esquece o processo histórico, do que foi necessário fazer para se chegar na presidência. Não posso acreditar que seja só a dimensão sonhástica que leva o PSOL a fazer esse tipo de declaração. Que seja clara a minha opinião: o PT NUNCA teve condições de democratizar a mídia, NUNCA teve condições de fazer a reforma política que queria (que ele mesmo ensaiou), NUNCA pode fazer a reforma tributária que queria, com instauração de IGF, escalonamento em 18 faixas de enquadramento (que ele mesmo tentou) etc. Digo melhor: não foi o PT que nunca teve condições. Fomos nós, cidadãos brasileiros progressistas. O projeto de esquerda que nós queremos já estava comprometido lá na Carta ao Povo Brasileiro e, não sejamos tolos ou perversos: NÓS SABÍAMOS DISSO. Choramos na Cinelândia com a eleição do Lula em 2002 – também estava lá, Gregório! – mas sabíamos que o máximo que conseguiríamos seria dar um jeitinho no capitalismo pra ajustá-lo a um viés social mais humano. Como fazer essas reformas apertando a mão do Sarney? Como fazer essas reformas aceitando acordos de letrinhas com uma penca de partidos clientelistas?

 Alguns dizem: “então, mas era aí, quando todo mundo estava na ‘onda Lula’, que ele deveria ter aproveitado e feito o que fosse necessário”. Sério? A ‘onda’ foi combinada e tinha lastro para acontecer. Vocês acham que estavam lidando com seres humanos, como nós, que queremos chutar a bunda de um empresário que escraviza seus funcionários? A combinação era clara: “nós, partidos clientelistas, garantimos PARTE de sua governabilidade – leia-se: não inventem de passar dessa linha – em troca de alguns favores”. Com isso, e apesar disso, tiramos milhões de brasileiros da linha de extrema pobreza, garantimos benefícios, como o bolsa família, que não só melhorou fundamentalmente a vida de milhões, como ajudou a alavancar a própria economia do consumo, do empreendedorismo e de direitos. Tiramos a economia do eixo neoliberal (que Dilma está aos poucos tentando fazer voltar) para dar lugar a um modelo keynesiano progressista, onde a base de desenvolvimento é através do investimento direto do governo em emprego e renda, combinada com uma cooperação latino americana em bloco, através do MERCOSUL, assim como fazem as nações européias, o Japão e os EUA. Além de alguns direitos humanos básicos terem sido ampliados e discutidos, como em relação à mulher, aos homossexuais e aos negros. E isso tudo – “só” isso – já foi sob uma chuva de acusações de toda a sorte por parte da direita: Assistencialistas! Compra de votos! Comunistas! Gayzistas! Censuradores!

A tal “linha” foi transposta. Para nós, foi muito pouco. Para eles, reacionários de uma classe com grana, poder e influência, foi “longe demais”. Aprendamos a lidar com o perspectivismo e a empatia. Não acho razoável supor que esse ódio de classe seja novo. Estava lá, quietinho, acovardado por uma ‘onda vermelha’, da mesma forma que estamos acovardados por essa ‘onda azul’. Não nos venceram. Nós não os convencemos. Mas foi justamente por esse sentimento horrível que o PT durou tanto tempo para chegar ao poder. Foi por esse sentimento fascista e retrógado que o Lula teve que aprender a falar melhor e mais baixo, se vestir como eles queriam e assinar alguns acordos. Foi por esse sentimento terrível que foi necessária a Carta ao Povo Brasileiro. Ele sempre esteve lá. Não levar isso em consideração e só o enxergar agora que os verde e amarelo desfilam, sem medo, com todos os impropérios e violências nas ruas do país é de, no mínimo, uma ingenuidade ou, no máximo, um mau-caratismo que me custa a crer.

 Digo ao PSOL: quero o mesmo mundo que vocês. Mas, vamos lá: façamos! Como chegar ao poder, construir uma base de apoio e um lastro social que garanta uma eleição de amplitude nacional?

Vamos lidar com o Brasil real e urgente?

O tango, Freixo, todos nós dançamos.

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Jaulas coloridas

pierrot-and-harlequin-1920 Nesse país, cada um cuida da sua própria jaula, endiabrado como um pobre sacerdote sedento de sangue, elevando sua própria cruz e estabelecendo suas regras que juram pelo pai-nosso-que-está-no-céu que são leis divinas. E cada jaula encarcera alguém ainda mais pobre, nascido ou padecido de um ventre um dia condenado à jaula, mas que fugira na tangente da malandragem. E todos nós somos um misto entre jaulas punitivas: pela lei, pelo medo ou pelos dois. Mas queremos crer que somos – merecemos ser! – vítimas. Não a vítima que se vitimiza, mas vítima que o é por merecer ser. Não importa a pobreza, não importam os maus olhares às classes e às cores; somos, cada um, mais vítima do que o outro e merecemos ter o poder de dizer quem será jogado às traças da sociedade destroçada; retrato microscópico e perene da barbárie do domínio: do corpo, da interdição, da morte, da grana; resumo: do outro. Rebelam-se contra o leviatã personificado num gigante desvairado, um estado, um governo, para só aquietarem seus gigantes internos monumentais, pavorosos, delicadamente cuidados por anos de naftalinas e lexotans. Gigantes ungidos pelas bocas abertas e olhos arregalados de ódio e vaziês. Onde mais seus próprios monstros internos não seriam postos em análise, mas em pedestais? Em pedestais, como múmias resignadas à eternidade da imutacão. A análise, da introspeção, que não produz, que questiona, que se volta para dentro e portanto inútil e descartável. Assim como os histéricos foram descartáveis na era vitoriana, uma sociedade doente pela castração, hoje, ao contrário, são incômodos os depressivos em nossa sociedade doente pela exibição: ambos não produzem, não encaixam, são minorias problemáticas. Histéricos de antes e depressivos de hoje, uni-vos atemporalmente contra a roda produtiva! Uni-vos porque esse sistema não lhe dá carona, não o convida para a festa e o enjaula se quiser aparecer de penetra. Esse país, que se recusa a se colocar individual e coletivamente num divã, que não entendeu suas ditaduras, resolveu a escravização com uma canetada na culpa, romanceou sua desigualdade na meritocracia e se escandaliza com a sua corrupção fedendo e exposta ao sol é o país da tristeza histérica camuflada de felicidade, como um híbrido entre dois personagens carnavalescos: por fora é um arlequim malandro, galanteador de turistas, e por dentro é um pierrot triste, ressentido de ódios e desprezos. E cada um cultiva sua própria jaula, num feudalismo eterno, um Dorian Gray apodrecendo no armário enquanto lindo se apresenta para o mundo. Em breve, seremos desnudados para sempre, não os corpos, esses já cansados e babados pelo planeta, mas a alma fétida, que não toma banho, que não se renova, mal-humorada, violenta e diminuta. Descobrirão o que sempre fomos: conservadores sorridentes fantasiados de plumas e paetês.

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Quinze centavos

Clóvis trabalha na padaria perto da minha casa. Às vezes me saúda num tom melancólico, tira o gorrinho branco que revela cabelos mais brancos do que o gorrinho sujo, já cinza, e coça a cabeça como se quisesse dizer algo entalado. Que foi, pergunto. Nada, rapaz, é alergia. Sorrio e pago o pão francês com queijo minas. Sanduíche sem graça, tem nem um presuntinho, Clóvis me provoca. Presunto me dá azia de manhã. Nada, é só tomar um suco de mamão que tira a azia.

Fim da tarde, passo pela padaria e está lá ele. Me olha por cima dos óculos, aponta o relógio e me acusa: Já de volta? Eu replico: Ainda aí? Ele gargalha, tira o gorrinho, coça a cabeça e diz por entre os dentes: Se eu saio antes o patrão não deixa nem eu voltar. Era isso que você queria falar de manhã? Nada, rapaz, já falei que era só alergia. Já foi ver isso aí? Às vezes é só tomar um remedinho. Já tomei, passei o dia todo dormindo, dormi até na hora de dar o troco pra uma cliente, acordei pulando com uma unha cor-de-rosa apertando minha mão que foi uma miséria. Era quanto o troco? Quinze centavos! E quinze centavos vale uma cochilada? Clóvis ri e diz que se pudesse sair do sonho sem acordar diria pra dona passar mais tarde que ele pagaria em dobro só para não ser acordado.

Sábio Clóvis. Fui embora sorrindo e pensando que se eu pudesse sair do estado de vigília sem dormir, entraria nos meus sonhos e perguntaria a todos se não topariam dar uma volta pela padaria do Clóvis. Lá bateriam um papo com a senhora e explicariam o valor de um cochilo à tarde.

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Repressão, negação e recalque

696787d4311d9f9ee936747f373c17a9-640x240A negação talvez seja a mais fácil e perigosa tentativa de esquecimento. Não elaborada, patina na gordura da pós-modernidade, onde tudo virtualmente é possível e cai no inevitável chão do recalque. Dele não passa, agarra-se com unhas e medo. Dali não sai. No Brasil, especialmente a negação sempre tomou corpo e foi aceita socialmente. Negamos a homofobia, negamos o racismo, negamos o machismo, negamos o bullying, negamos a absurda estratificação social, a concentração criminosa de renda, o preconceito de classe, a classe em si, negamos a esquerda, negamos a direita e, hoje comemoramos mais um aniversário de algo negado por muitos anos: a ditadura militar.

Só bem recentemente analisado por uma Comissão da Verdade, o Brasil senta – incomodamente – num divã ocupado há anos por nossos vizinhos latino-americanos. Aos poucos, tentamos deixar com que esse inconsciente coletivo apareça, com todos os problemas que lhe/nos corresponde. Não é de se estranhar: como alguém que pela primeira vez enfrenta seus demônios depois de um longo período de silêncio recalcado, arrumamos culpados aos gritos, corruptos na esquina, soluções de extermínio e pedidos de volta ao regime que não nos permitia pensar e, portanto, elaborar tudo isso que agora – parece – estamos começando a fazer, com inevitáveis doses de dor.

Quantos casos de violência contra homossexuais cometidos por pessoas que não elaboraram bem sua sexualidade você já viu? Quantas pessoas, que se dizem vitimas de uma “ditadura”, não pedem a volta da repressão? Quantos sonegadores, subornadores e toda a sorte de corruptos você já não viu vociferando contra o Estado?

A alteridade, essa palavra que se relaciona justamente com “o outro”, é o nosso maior desafio. Reconhecer, em si mesmo, o que você tenta matar no outro é, mais do que escapar da negação, a única forma de sair do recalque e enfrentar, de fato, o problema de frente.

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Fôlego… e luta

Opinião não me ofende. Se fosse tudo questão só de opinião, estaríamos livres. Livres de espancamento de homossexuais por estarem demonstrando afeto em público, livres de olhares, gestos, palavras contra pretos e pobres, livres de xingamento de ‘burro’, ‘puta’, ‘cachaceiro’, ‘vagabunda(o)’, ‘sem dedo’ ou de ‘comunista’, praqueles que acham que “comunista” é um xingamento. Se fosse tudo só uma questão de opinião, estaríamos livres de considerar a hipótese de uma intervenção militar no Brasil. Estaríamos também tranquilos em acreditar que a decisão das urnas seria respeitada inclusive – e principalmente – por quem nelas foi derrotado.

Mas não. O problema é que a opinião pode se transformar em ação; e essa ação pode ofender, alijar e matar. A democracia, essa que muitos dizem estarem indo às ruas defender, não é algo que se defenda. É algo que se constrói dia a dia. E, no nosso caso, em particular, está longe de estar sequer alicerçada. A democracia não é e nunca foi algo acabado. Vivemos há 30 anos sem uma ditadura militar, mas entenda: a quantidade de relações de poder, de grana, de informação, de influência, de educação, de mídia etc etc. que nos foi legada pelos governos militares está longe de acabar.

Nossa democracia é jovem, cheia de problemas de personalidade e de falta de informação. Acha que pode mudar o mundo com um presidente ou com uma lei. Acredita num conto de fadas onde o rei, ou a rainha, pode ditar sozinha(o) os rumos de um país. Acha que corrupção é uma palavra maligna que se combate com a cruz e a espada da moral. Mas, ao mesmo tempo, como a maioria de jovens, só enxerga essa cruz nos outros. Nunca em si. E, para sempre, repetem (falo pelo lado masculino) os bullyings nas escolas pelos seus filhos – à risada satisfeita do pai, os arregos à PM por estar dirigindo bêbado ou com a carteira vencida, os comentários homofóbicos no final da pelada sobre aquele colega do trabalho que “tem um jeitinho de viado” ou sobre aquela mulher que “dá pra todo mundo”. O mundo feminino pode ser muito perverso também, eu tenho certeza.

Vivemos, até agora, mais um menos um período de uma trégua falsa. De uma trégua à lá brasileira, fingindo que não somos racistas, fingindo que não houve tortura nesse país e, portanto, levamos com a barriga a questão da anistia. Alguns falavam em “revanchismo” ou “perda de tempo”, e poucos percebiam a gravidade da doença que gestávamos ali. Havíamos vencido suas manifestações mais graves, inoculado o vírus. Tomamos nosso remédio que mascarou os sintomas até hoje. Só que em alguma hora, sem tratar a causa, a doença volta.

E voltou com força nas bocas espumantes, nos olhares raivosos, nas gargantas secas de ódio e na desinformação perigosa. Não uma arrogância de considerar que são só “opiniões” – como disse no início – e eu quisesse impor a minha. Quando são evocadas medidas que preveem aniquilar o outro, solapar a decisão majoritária ou perversamente “fazer sangrar” um governo sob um manto verde-e-amarelo da CBF, as coisas deixam de ser só “opiniões”.

É muito difícil ficar num estado de tranquilidade para alguém que sempre se preocupou, estudou e se inteirou de todos os meandros possíveis da política e, principalmente, de como isso afeta não só a sua própria vida, mas a vida da maioria da população. Você vê justamente tudo aquilo que sempre teve medo (e raiva, sim), todo o cenário de barbárie cultural e política, voltando-se contra você com o ódio potencializado por acreditarem, tais zumbis, que você é o problema.

É absolutamente enlouquecedor e perigoso.

O que fazer? Por um lado, deveríamos combate-los em nome do projeto de vida. Por outro, responder com a violência que propõem é dar razão ao estado de barbárie que eles pretendem impor, junto com fundamentalistas “da paz”.

Queria ter a tranquilidade iluminada daqueles que, mesmo depois de torturados sob as mãos de um militar, nazista ou brasileiro, tantas vezes disseram em entrevistas e palestras: “não são eles os culpados; é a conjuntura que os lavou os cérebros”.

Não consigo ser tão cristão.

No entanto, amigos humanos, é preciso calma e tranquilidade. Mais do que nunca. Ganharemos pelos corações; nunca pela guerra.

Por essa, perderemos todos.

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Nós, os universais

Nós, ocidentais, não acreditamos na verdade única. Mas acreditamos que se um dia essa verdade for descoberta será nosso fruto, de ocidentais e científicos. Como não podemos explicar a origem da vida, a não ser em suposições que batemos o pé para dizer que “são diferentes da religião”, seguimos bailando a valsa da presunção. Bailamos desinibidos, numa mística grandiosa, universo em expansão infinita, vida eterna, e acreditamos que todos no baile nos invejam. Mal sabemos que há gente, de outra dança, que acha curioso e engraçado como nos portamos na pista.

Somos tão incríveis que só nós, individualmente, temos poder para mudar o mundo. Seja o escolhido, vá, você consegue!, faça diferente, és único dentre tantos. E tantos são únicos. Como administrar tanta histeria e pretensão? Já é lugar comum dizermos individualistas, mas o que bem significa isso?

Reduzimos tanto ao nível unitário, individual, único e singular, que já não somos mensurados como só um indivíduo: cada órgão nosso obedece a um comando próprio. Nossa medicina insiste em ignorar conhecimentos milenares que entendem o sistema do corpo atrelado a causas comportamentais, energéticas e psicossomáticas. Há milênios, a medicina oriental ensina que problemas na altura da garganta e da fala são decorrentes da timidez ou da forma como retemos o que queremos dizer. Aqui, riem-se dessas “crendices”. A expectativa de vida no Japão supera os 83 anos, em média.

Somos tão particulares e únicos que nossas disciplinas acadêmicas, assim como a noção médica do corpo, obedecem a um sistema feudal: cada uma toma conta de seu próprio assunto. Historiadores brigam por conceitos sociais com sociólogos, que por sua vez ignoram as análises antropológicas, que acham besteira a visão freudiana da psicanálise, que, por fim, ignoram a história. Engenheiros acham curioso alguém se formar em “ciências sociais”. Economistas juram dizer a verdade sobre os fatos da Terra. E todos tratam do mesmo tema.

Eu, que fiz mestrado numa instituição liberal, me impressionei ao ter sido questionado, por uma banca formada por filósofo e antropólogo, o porquê de ter usado conceitos provenientes da psicanálise, já que minha dissertação era no instituto de Ciências Sociais. Falava sobre a “melancolia”. Achei, no mínimo, justo estudar o que psicólogos entendiam sobre isso. Não. Para a banca, não importava o que dizia Freud. Só Lévi-Strauss era digno de fonte.

Mas nossa pretensão não se encerra “só” num individualismo; é necessário dizer que esse individualismo é universal. Todos são iguais. Parece magnífico, mas será que é exatamente assim? Os direitos universais do homem e do cidadão dizem que todos temos os mesmos direitos contanto que esses direitos sejam ditados por nós, ocidentais e homens. A cidadania é restrita a quem se encaixa nesse paradigma. Os outros são os selvagens, que não querem se incluir no planeta Terra da universalidade.

Para garantir o poder da coerção, trocamos deuses por leis, opiniões por regras e concepções por dogmas jurídicos. E perversamente justificamos nossa atuação violenta no mundo oriental na conta do universalismo que nós concebemos: talvez a única dimensão holística que atingimos. Mas o holístico nesse caso parte de uma percepção individual: é formulado a partir do que um europeu pensou que era o seu direito e replicou ao mundo árabe, latinoamericano, sulafricano, micronésio etc. A alteridade – a noção do outro – não difere muito da ideia que os navegantes tinham sobre os indígenas há meio milênio. Só foi reelaborada para que não parecesse uma declaração deslavada de guerra sobre o diferente. A mensagem subliminar é: junte-se a nós e mereça a civilização, agora você tem a oportunidade.

Alguém há de lembrar – com razão – que não é preciso ir aos orientes para perceber furada essa idéia universal. Dentro de nossos países iluminados, pretos, pobres, vagabundos, drogados, putas e índios também não foram convidados para a civilização. A não ser que eles não se comportem como índios, drogados, pobres, pretos, vagabundos e putas.

E se depois de ler isso, você retrucar, num muxoxo, “ah, então nós somos terríveis e eles que são perfeitos?!”, você dará razão mais uma vez para a idéia de que a alteridade é realmente um problema para nós: é difícil colocarmo-nos no divã do pertencimento no planeta Terra. Olhemos para nós mesmos: há muito problema aqui para resolvermos antes de cobrarmos algo de alguém.

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Charlie Hebdo: o inferno são os outros

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Sempre fui contra a violência física. Mesmo na fase adolescente, tomado de sentimentos passionais/políticos extremos, nunca fui a favor de atos que vitimassem pessoas, mesmo não sendo fatais. A vida e a integridade humana sempre foram o limite das reivindicações, para mim.

Diante do fatídico ocorrido aos cartunistas da Charlie Hebdo, a primeira reação é de revolta: trata-se de uma ação bestial e espera-se que os autores e mentores sejam perseguidos e cumpram as devidas penas dentro dos limites do nosso sistema punitivo ocidental.

Também sou convicto – a partir de uma tradição ocidental liberal em que fui criado, de que todo mundo é livre para dizer o que pensa, da forma que for, sendo responsável pelos seus atos difamatórios em instâncias jurídicas ou em reações diretas de repúdio. Claro, sempre mantendo o limite da integridade física, como disse no início.

Isso posto, acho que valem algumas questões de que tenho sentido falta depois desse triste evento.

Vi muitas reações perigosas, por parte de alguns cartunistas e jornalistas em relação ao evento: alguns diziam (no site do G1) que isso era responsabilidade dos extremistas (juntando feministas e outros “istas”) que queriam transformar a vida numa “grande chatice”. O próprio dono do jornal (Charlie Hebdo) disse que “combate, sim” as religiões que, segundo ele, não respeitam a liberdade, afirmando que se danava para as leis do Corão porque vivia “sob as leis da França”.

Charbonnnier, um dos cartunistas mortos no atentado de quarta-feira, logo após um ataque incendiário na sede da revista em 2011, disse literalmente à BBC: “Não culpo muçulmanos por não rirem de nossos cartuns. (Mas) eu vivo sob a lei francesa. Não vivo sob a lei do Corão” (…) São extremistas idiotas”.

Jean-Paul Sartre, filósofo francês, proferiu a célebre frase de que “o inferno são os outros”. Ou seja: o fato de o outro ser livre faz com que ele possa pensar o que for, agir sob suas convicções e verdades; e isso é o inferno. Nessa perspectiva, o “inferno” nada mais é do que a “alteridade”; ou seja: o outro e tudo o que esse “outro” representa em nós, ou no “eu”.

Existe algo bastante sutil e ao mesmo tempo muito contundente nesta análise. A França, no berço do iluminismo, fundou, junto com os Estados Unidos, a ideia do universalismo. Todos somos iguais; universalmente iguais.

Mas quem são os iguais?

Não sou religioso, nem batizado e nem acredito em Deus. Mas estou longe de dizer que para quem quer que seja que o “Corão é uma merda” (veja ilustração) e perder o meu tempo – e a minha convicção de convivência pacífica no planeta Terra – em colocar muçulmanos em posições claramente ridicularizadas, nus, de quatro, com objetos fálicos penetrando eles. “Ah, mas nós fazemos isso com todo mundo”, diria alguém. Pois bem: nem todo mundo é igual. É esse o ponto. Uma coisa é o François Hollande, um francês liberal criado em Paris, ver sua caricatura na revista sendo ridicularizada em termos políticos, estéticos e até sexuais. Outra é um muçulmano, no interior do Marrocos, ver o profeta que ele cultua sendo retratado da mesma forma.

Para pensarmos que “somos iguais”, antes é necessário lembrar – e ter bem forte em mente – que somos muito diferentes. Qualquer tentativa de homogeneizar a partir de uma perspectiva única é uma violência e uma declaração de guerra.

É absurdamente arrogante – e burro, desculpe-me – desconsiderar uma visão antropológica da existência da moral do outro. É uma religião às avessas; não à toa que no auge do positivismo chegou-se a criar uma “Igreja Positivista”, baseada na razão, que é tão crente quanto qualquer orixá, santo ou entidade.

Nietzsche dizia que “Deus estava morto”, porque nós o matamos, numa simbologia irônica de dizer que nós o substituímos pela ciência. É um espaço da verdade sendo disputado por fanáticos religiosos contra fanáticos cientificistas, ou fanáticos universalistas, desde que o “universal” seja a minha realidade ocidental iluminada propagada aos quatros cantos do planeta.

Para se considerar a alteridade, não basta a “tolerância”. “Tolerar”, inclusive, dá conta da dimensão preconceituosa e arrogante de achar o outro menor e pior, mas… eu tolero! Para se conviver com o outro, é necessário acreditar que a crença que ele tem faz algum sentido, por mais esdrúxula que lhe pareça. Lembre que do outro lado, há gente que considera que nós, ocidentais, escravizamos mulheres e as prostituímos. Não há nenhum nexo nisso?

Eu, como brasileiro e carioca, não posso cobrar de um fanático religioso, que chega ao terrorismo, qualquer atitude coerente com o mundo que eu desejo. Posso, sim, minimamente cobrar de ocidentais, muito mais próximos da minha realidade, que se pense no outro como um igual a partir da crença menos estúpida de querer aniquilar a forma de pensar daquele que eu não entendo ou não concordo.

De novo, isso não justifica o que foi feito e nem coloca a culpa dessa ação bestial na Charlie Hebdo, mas revela um tipo de comportamento tosco: nenhum cartunista deixará de pensar, ou escrever, ou desenhar o que quer que seja (assim espero) porque dois ou três criminosos dizimaram a redação de um periódico. Mas, da mesma forma, nenhum muçulmano deixará sua religião porque dois ou três cartunistas ridicularizaram Maomé ou disseram que o Corão era uma merda.

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