Nas rupturas, nas grandes rupturas, naquelas em que a humanidade se sente ameaçada por um terremoto, por um meteoro, pela peste, ou pelo fascismo, o ser humano é capaz de proezas inconcebíveis.
Contam que Vasili Arkhipov, um oficial da Marinha soviética, evitou um massacre nuclear em 1962 na famosa “Crise dos Mísseis” ao recusar um ataque a Washington. O submarino que comandava estava sem comunicação com Moscou e, por alguns instantes, foi avaliado pela tripulação militar que a guerra havia começado. Estavam um botão de disparo e um ser humano, frente a frente e eles não se encontraram. Não havia começado a guerra, mas se o disparo tivesse sido feito, a guerra teria começado e, provavelmente, não estaríamos aqui lendo e escrevendo este artigo.
Na mitologia grega, há a figura de Plutão que simboliza o arquétipo daquilo que está localizado no mais fundo, na casa de máquinas, no ponto zero da vida e da morte. Dali se chega no Inferno, mas também faz da última centelha a possibilidade da combustão que levará à cura. Ali é o ponto de inflexão.
Estamos caminhando a passos largos para um ponto desses. De onde digo isso? Justamente percebendo que há muitos – talvez a maioria – imunes ao senso crítico. E é exatamente isso que caracteriza o fascismo: um estado de coisas onde o ódio à diferença, um inimigo comum, a solução fácil, a solução violenta, um modo de vida castrador e a tutela à vida privada dominam grande parte do inconsciente coletivo e evitam o diálogo.
O ódio domina e apertaria o botão de disparo que Arkhipov recusou.
Se acreditamos no que nossa história nos dá de notícias de tempos não tão
remotos, a sociedade brasileira – como um corpo coletivo simbolizado na posição
do paciente num divã – precisa de uma
revolução democrática e de ponderação. Porque foi isso que nós perdemos, ou
estamos muito próximos daquele momento onde há a centelha que dirá se haverá a
combustão ou o apagar completo.
E essa não é só uma revolução, ou ponderação, da esquerda. A direita, para ser
direita, precisa de um ponto de referência para dizer-se direita. E essa
referência é justamente a esquerda. Sem ela, só existe o único, o todo, o
totalitário: ou melhor, o fascismo. Porque a ele não existe contraponto. E para
o fascismo se manter, há de ter a violência que emana da sociedade – ou de
grande parte dela. Ela precisa estar bem armada e disposta a manter seu status quo por vontade própria.
A democracia é a célula básica, a casa de máquinas possível dessa coexistência que, nós, seres humanos em 2018 conseguimos até agora. Se ela for rompida, perderemos e ratificaremos nossa própria destruição.
O fascismo vem comendo o extrato social mais desalentado economicamente da
população brasileira, chegou na classe média – de onde fazemos parte – e ameaça
as individualidades, nas questões de gênero, de origem, de raça, de sexo. E
isso é como sentenciar de morte uma quantidade enorme de indivíduos. Porque é o
que eles são – nós somos! – no que há de mais indivisível. Por isso, o
indivíduo é ameaçado quase na sua essência: não há espaço para muito de nós,
negros, gays, estrangeiros e mulheres porque simplesmente ninguém deve ser
obrigado a deixar de ser mulher, gay, negro ou estrangeiro.
Mas há negros e gays e mulheres que votam em Bolsonaro.
Sim, por isso o fascismo é eficiente. Porque faz com que indivíduos das mais diferentes origens se sintam potentes em seu discurso. Simone de Beauvoir já nos alertava que “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. Lá na frente, o futuro literalmente a Deus pertence. O importante – sentem os portadores do discurso fascista – é sentir o poder, o tesão de portar uma arma, emanar uma voz mais forte, deixar fluir seus desejos mais inconfessáveis e aniquilar o outro. Sem que ninguém o reprima. Ou melhor: que seja reprimido quem o quer reprimir, fazendo perversamente a lei redigida, eleita pelo povo, ratificar a barbárie.
Mas se a Constituição, que baliza a República, nasceu justamente das garantias e direitos do homem contra o Estado, estaríamos então num movimento anticonstitucional. E não há algo mais onipotente, prepotente, absolutista e violento do que o pensamento único. E, de novo, só a democracia garante a divergência; assim como o esporte garante a existência do confronto, sem que a equipe perdedora seja fuzilada.
E é dessa forma que percebemos que o que nos une é a única instituição que nos
permite distinguir-nos na adversidade. O fascismo, não. O fascismo troca os
sinais de todo e qualquer fato. Se você aponta para o perigo do nazismo de
Hitler, a máquina de informação fascista dirá que o “nazismo é de esquerda”. Se
alerta para a violência de seus apoiadores, o fascismo dirá que reprimir seus
ideais é, também, uma violência. Como se ser homofóbico e racista estivesse no
mesmo rol de possibilidades, e de ética, de ser a favor dos direitos humanos. Para
todas as outras respostas, há enchentes de fake
news como cortina de fumaça para escapar do debate. Porque no oceano turvo
de informações, quanto mais for possível mergulhar nesse jogo de espelhos onde
nada tangencie a verdade, melhor.
Por isso, precisamos do heroico, de algo solar, que faça ser possível a centelha se transformar em cura.
Não falo de um Superman. Digo de um arquétipo de heroísmo, algo da ruptura que cada um de nós é capaz. O jornalista que se rebela ao ser obrigado a dar uma notícia combinada pelo dono da emissora para atacar um só candidato, a crente que se recusa ao sermão de ódio de um pastor e confia na sua intuição de paz, o comerciante que arrisca um cliente para não arriscar a humanidade, o parente que põe em cheque a “harmonia do ódio” familiar ao ponderar com senso crítico, o policial que se sente empático ao senhor que protesta etc.
Todos esses são atos heroicos e não negam, em absoluto, as lutas coletivas. Ao
contrário: essa ruptura individual só se torna possível – e potente – se houver
um sentimento social envolvido que o impulsione. Sentimento este que, com
certeza, estavam segurando os dedos de Vasili Arkhipov no momento em que, mesmo
sendo um profissional da guerra, decidiu optar pela civilização contra a
barbárie.
Na cabine de votação, na casa de máquinas da democracia, você terá a chance de
repetir o gesto de Arkhipov e apertar os dois botões que fará da centelha
combustão para a vida, impedindo que o ódio confirme a guerra civil e o horror.
Votar em Bolsonaro é disparar os mísseis. Sim, Haddad é o diálogo; é a
não-guerra, o não-ódio e a não-tortura.
Não é pelo PT, é pela democracia e pela vida.